sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Sobre o tempo

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Do tempo que passou, nos restaram recordações, tanto boas quanto más.

Do que vivemos, aprendemos a repetir os acertos e não reincidir nos erros.

Do tempo que estamos vivendo, não nos damos conta de quais serão as recordações que ficarão na memória.

Do tempo que ainda vamos viver, esperamos com ansiedade e expectativa.

Do que nos esquecemos do dia de amanhã é que ele é o hoje idealizado.

Que no próximo ano todos vivam o hoje sem idealizar o amanhã. O que é ideal fica sempre no imaginário e quanto mais ficarmos no imaginário, mais deixaremos de viver.

Sonhem o quanto puderem e realizem o máximo que conseguirem.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O Natal de Jocasta

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O dia 24 de dezembro chegara tão rápido que o pai nem havia tido tempo de juntar um pouco de dinheiro para o presente das crianças. Quando a mulher soubesse, o mataria, faria o costumeiro escândalo de véspera de Natal, já habitual na casa dos Laranjeira. Sempre, no mês que antecede dezembro, ele e a mulher planejavam como poderiam otimizar o orçamento e economizar para que os filhos pudessem receber presentes. Mas nunca dava. O pai não resistia à cachaça diária e optava por ela. Gastava mesmo todo o dinheiro que deveria ser economizado com sua tão reconfortante amiga de todas as horas. Era difícil para ele, como pai, ver os filhos ficarem sem presentes de Natal, todo ano era assim. Não se recordava de haver um natal sequer que ele e a mulher tivessem presenteado os filhos. Nem a mais velha, Jocasta, de 13 anos, havia sido presenteada algum dia. Exceto pelos sapatinhos de batismo que havia recebido com poucos dias de vida, logo que saíra da maternidade do Hospital São Clemente.

Enquanto o pai sentia-se culpado da pinga quente que tragava, a mãe tratava de ver se conseguia algum frango para assar no natal. Frango assado na casa dos Laranjeira era algo raro, raríssimo. Até passavam sem ele alguns natais. Quando isso acontecia, era substituído por algum peixe que o pai pescava no rio que passava no fundo do casebre. Na verdade não era bem um rio. Estava mais pra um córrego sujo que qualquer outra coisa, mas era o que dava pra fazer. Então, para que não tivessem que comer o peixe com gosto de esterco no final do ano, a mãe de Jocasta tratava de pedir de porta em porta um donativo para a casa de caridade Criança Faminta. De certa forma não deixava de ser, pois suas crianças viviam famintas. Não gostava de pedir, mas quando o desespero lhe apertava a garganta ia correndo mendigar algumas migalhas por aí, para que conseguissem de alguma forma comemorar uma época tão bonita como o natal.

Além de Jocasta, a mãe ainda tinha como seus filhos Atílio, Pedro, Cassiano, Maria Adélia e Maria Cristina. Com esse tanto de irmãos, o frango havia de ser bem repartido, senão alguém ficaria sem.

Jocasta não entendia o porquê de a família gostar tanto de Natal, quando essa época do ano somente acentuava as dificuldades daquela família. Ficava com dó da mãe colocando a mesa com umas velas usadas, os copos de requeijão, a toalha vermelha rasgada, ainda da época do casamento. Os presentes sempre ausentes na véspera de natal, assim como no dia de natal, assim como no dia seguinte do dia de natal até todos os dias do ano. Apertava-lhe o coração ver o pai sempre morto de cansaço, sempre com aquele cheiro de ferro misturado com pinga e suor. A mãe, sempre tão infeliz, tentando aparentar uma felicidade tão inexistente quanto os presentes de natal e sempre tão vazia quanto as promessas do marido de que deixaria a bebida. Os irmãos sempre com o choro de fome e pobreza entalado na garganta, mas não posto para fora. O choro que não vertia fazia as rugas aparecerem mais depressa e a responsabilidade chegar mais rápido aos pequenos irmãos Laranjeira.

Querendo dar um Natal um pouco mais digno do que costumava ser o de sua família, Jocasta resolveu que perderia ela a dignidade por uma noite apenas e arrecadaria um dinheiro extra para dar à mãe como presente de natal. A deixaria muito feliz poder ver sua mãe e seu pai sorrirem verdadeiramente durante uma ceia de natal. Eles não precisariam saber a origem do dinheiro. Diria que achara no meio da rua, que fora providência divina!

Na noite seguinte, antevéspera de natal, Jocasta saiu do casebre à beira do rio no qual morava e rumou em direção à Rua Santa Tereza, local onde garotas de todos os tipos e idades vendiam o corpo em troca de alguns reais. Umas que estavam há muito tempo no ramo conseguiam lucrar mais, mas as muitas que ingressavam na vida pregressa das ruas não conseguiam tirar mais que uns vinte e cinco reais por noite. Chegando lá, parou numa esquina onde não havia outras garotas, subiu um pouco mais a saia de renda que pegara emprestado de uma vizinha e colocou a mão na cintura. Dava para sentir os ossos. Ela mesma ficara espantada com a magreza, arregalando os grandes olhos castanhos emoldurados pelo cabelo crespo e comprido que caia pelo ombro do jovem corpo. A tensão crescia conforme aparecia algum carro, quando alguém diminuía a marcha quando chegava perto dela, para depois acelerar e sumir na escuridão do fim da rua. Até que algum tempo depois, umas duas horas depois de se prostrar ali, um carro realmente parou e lhe perguntou o preço.

- Quinze reais – respondeu a garota, sufocada pelo medo e pela insegurança do que fazia.

- Quanto? Garota, não se enxerga? Você vale no máximo uns dez reais, é o quanto cobram as meninas por aqui. Te pago dez. É pegar ou largar.

Pegou. Foi com o homem para uma rua sem saída, próxima da rua onde se prostituíra. O homem, um senhor pouco apresentável de barbas grisalhas, aparentava ter um 60 anos, era gordo e não tinha alguns dentes, além de ter umas micoses espalhadas pelo rosto. O senhor que pagara Jocasta não deveria conseguir mulher sem pagar há muitos e muitos anos, se é que um dia conseguira.

O sexo foi dolorido. Jocasta engoliu o choro e fez o trabalho ao qual havia se comprometido. Ao final da hora combinada, pegou os dez reais e saiu andando com as pernas um pouco abertas. Estava doendo muito.

Chegou um casa e deixou o dinheiro ao lado da cama dos pais, no lado do pai e foi dormir com um misto de dever cumprido e tristeza sem fim. Na manhã seguinte se lavou muito, para ver se saravam as feridas da noite anterior. Disse à mãe que achara os dez reais jogados na sarjeta próximo à casa deles na noite passada.

- Que dez reais menina?

- Os dez reais que deixei ao lado do pai nessa noite.

- Pois eu não vi nenhum dez reais por aqui – respondeu a mãe, já imaginando que o marido se apossara do dinheiro – Teu pai deve ter pego. Devia ter deixado o dinheiro comigo menina! Lá se vai tudo em pinga!

Jocasta, imaginando que o pai gastaria tudo em pinga mesmo, entalou o choro na garganta e saiu com a mãe para pedir dinheiro nas casas da redondeza. Ao final do dia, contaram as moedas. Conseguiram dinheiro para o frango, que compraram às pressas para a ceia de natal. Cearam como sempre. A única mudança que se operara ali era de Jocasta, que depositara todo o ódio da noite anterior na figura irresponsável do pai beberrão, que gastara escondido o dinheiro que havia conseguido em troca de sua dignidade. Aquele fora o natal de sempre para os outros, com pouca comida, um frango na mesa, o pai bêbado, os presentes invisíveis, mas fora o pior natal da vida de Jocasta, o natal em que aprendera que sua dignidade não valia mais que dez reais.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Parte de mim

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Hoje me deu saudade. Saudade de ser quem eu sou, de ser quem sempre fui. De ser quem eu era. Bons tempos os tempos que não voltam, os tempos passados em tempos distantes. Bons natais eram os de antes, onde havia magia, onde havia maior sentimento, onde havia mais natal nos natais.

Hoje me deu saudade de mim. Me perguntei em determinado ponto da noite de véspera de natal quem eu era. Quem eu sou? Sou os olhos verdes e melancólicos de meu pai, sou a fisionomia tirada em papel carbono de minha mãe. Mas sou também os brinquedos de infância, as bonecas com seus cabelos cortados. Sou os livros infanto juvenis que me despertaram para o que gosto de verdade, sou os doces de domingo da minha avó, sou o canto dos meus pássaros e a amizade com meu cachorro. Sou os sorrisos sinceros da minha mãe, a bondade de meu pai e as piadas do meu irmão. Sou também a saudade de minha coelha Dalila e de tantos outros que partiram ou se perderam no meio do caminho. Sou um poço de expectativas e sonhos e um abismo de saudade e nostalgia.

Quero ser a vastidão. Quero ser mar, sem deixar de ser deserto.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O pé esquerdo de Alice

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Alice acordou cansada. A noite anterior lhe rendera bons risos, reencontros inesperados e ótimas promessas de reencontros próximos que não aconteceriam, ela bem sabia. Era sempre assim. Quando conseguiam reunir todos os amigos em alguma festa, só os reuniria de novo dali um bom tempo. Mas, claro, todos haviam feito planos para um futuro próximo e se despedido com juras de uma breve nova reunião.

Levantou com o pé esquerdo. Droga – pensou. Não gostava de iniciar o dia com o pé esquerdo. Lutava para não acreditar em superstições baratas, mas, ah, como se entregava a elas de corpo e alma quando ninguém estava por perto! Levantar com o pé esquerdo significava complicações, dia difícil, muitos problemas à vista. Ainda pensando em como fora desprevenida levantando assim, sem pensar com que pé o faria, pegou o pó de café guardado no armário suspenso acima da mesa da cozinha e colocou a água para ferver. Olhou em volta. Tudo estava na mais perfeita ordem. Nenhum grão de poeira fora do lugar. Também, pudera. Não morava com mais ninguém, e a bagunça que se permitia muito raramente era rápida e sorrateiramente arrumada nos minutos seguintes por ela mesma.

Enquanto a água fervia, Alice foi até a porta do apartamento e pegou o jornal. Quando voltou à cozinha, terminou de preparar o café e passou um pouco de manteiga no pão amanhecido. Enquanto bebericava o café e dava mordidas sem vontade no pão de ontem, lia a coluna social e algumas manchetes que lhe chamavam a atenção, como as cheias de verão e a alta nos impostos. Assim que terminou, tratou de arrumar logo o que havia tirado do lugar ou sujado e foi ao quarto para vestir-se. Passando pelo corredor, avistou uma barata. A barata caminhava lentamente entre o seu quarto e o banheiro que ficava no corredor, como se o território lhe fosse destinado. Logo baratas! – pensou Alice. Sabia que já começara. Mal se iniciara o dia e as coisas já estavam dando errado. Tudo por causa daquele maldito pé esquerdo. Quisera eu ter nascido com os dois pés direitos! – bradou enquanto se dirigia à lavanderia para pegar uma vassoura para matar o pequeno, mas asqueroso ser que residia em sua casa sem que ela tivesse conhecimento – até o presente momento.

Pegou a vassoura cujo cabo lhe pareceu ser o mais longo, apesar da suspeita de que fossem todos do mesmo tamanho. Chegando ao corredor, pode vê-la. Ainda estava ali, espreitando seu quarto. Pé ante pé, Alice caminhou sem fazer ruído. Nem ela mesma pôde ouvir o ruído de seus passou ou sua respiração. Estendeu o cabo da vassoura e num brusco, mas rápido movimento, matou a barata. Pegou um punhado de papel higiênico, enrolou aquele inseto detestável e jogou-o na privada.

Assim que terminou de se arrumar, saiu do apartamento para o trabalho. A barata não estava em seus planos e terminou por atrasá-la um pouco de sua habitual rotina.

O vento estava mais forte e mais gelado do que havia previsto, o casaco que havia pegado para aquele final de maio não seria o suficiente. Passarei frio – pensou Alice, já entrando na autopista que a levaria para o estúdio fotográfico no qual trabalhava. Tentou colocar na estação de rádio que gostava de ir ouvindo pela manhã, mas estava fora do ar. Por conta de não estar encontrando a estação desejada, acabou se distraindo ao volante e por pouco não cruzou o semáforo vermelho.

- Maldito pé esquerdo! Maldito seja! Não acredito que fiz isso, não acredito...

Enquanto as rodas do carro a levavam ao destino desejado, a boca de Alice não parava de esbravejar contra o lamentável destino daquela manhã, o destino com seu pé esquerdo. – Maldito seja.

Estacionou o carro na vaga que lhe era destinada. Entrou. Cumprimentou a todos, conforme os encontrava. Começou a fazer seu trabalho. Recebeu o comunicado da secretária: dois contratos que fotografariam hoje haviam sido cancelados. Não conseguiram remarcar nada para o horário da tarde, que ficaria vago. “Prejuízo. Que baita prejuízo.”

Terminou de fazer o que tinha de ser feito e foi embora por volta das duas da tarde. Um pouco antes. Chegando ao estacionamento, ela pôde ver que algum pássaro havia feito o favor de aliviar suas necessidades fisiológicas bem em cima de seu carro. Muitas necessidades. Talvez tivesse sido mais de um pássaro. Uns três ou quatro.

Entrou no automóvel rabiscado por necessidades aviárias e foi ao seu restaurante preferido. Como naquele dia não teria mais que voltar ao estúdio, havia tempo de sobra para esperar pela comida.

Entretanto, não contava que tivesse que esperar tanto. Uma excursão com uns turistas italianos resolveu desembarcar com sua gente ali também, no restaurante preferido de Alice. O lugar ficou lotado, as pessoas se empilhavam nos lugares à espera de sua tão almejada comida. A espera foi maior do que pensara. Duas horas de espera. Sozinha. Numa mesa de restaurante. Com italianos rindo e gritando à sua volta. Tentava se distrair com algumas coisas, como com o celular ou com a conversa de alguém por perto que se fizesse entender, mas não obteve êxito. O prato chegou depois de um tempo. Camarão ao molhe rosè. Frio. Deveria estar pronto há algum tempo em cima do balcão da cozinha e o esqueceram lá. Ótimo. Comida gelada após horas de espera, mais uma peça pregada pelo pé esquerdo de Alice.

Voltou à casa revoltada pelo tempo e dinheiro perdidos no restaurante. Odiava aquele restaurante. Nunca mais voltaria lá. Não sabia como aquele poderia ser o restaurante que mais gostara durante tanto tempo.

Resolveu não sair mais do apartamento, para não correr o risco de algo dar errado. Mas hoje, definitivamente, não era o dia de Alice. O telefone tocou. Era uma loja de produtos esportivos querendo verificar uma compra no cartão de crédito de Alice. Mas ela não comprara nada nessa loja. Após rápida averiguação, constatou-se que o cartão havia sido clonado. Alice ligou para o gerente do banco e ficaram séculos na linha até que conseguisse cancelar o cartão. Olhou para o relógio. Já era tarde. Amanhã teria que acordar mais cedo que de costume, teria de passar na lavanderia deixar o vestido da noite anterior, derrubara vinho e não se arriscaria a lavá-lo sozinha.

Escovou os dentes, prendeu o cabelo e olhou para os pés. Foi até a sala, pegou uma folha de papel sulfite e escreveu em letras maiúsculas: LEVANTAR COM PÉ DIREITO. Pregou a folha em frente à cama, na porta do armário Colocou o despertador e antes de pegar no sono, pensou: “Maldito pé esquerdo!”.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Êxtase

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Ela estava quase lá. Faltava um pouco, pouquinho pra que conseguisse chegar. O frio tomava conta da barriga e arrepiava os cabelos da nuca. Os pés já começavam a sentir o formigamento. O coração disparado, a cabeça já sentindo vertigens. Mas ela queria. Jana queria mais que tudo sentir aquela sensação. Estava aguardando ansiosa, pois isso nunca havia acontecido com ela antes. Já tinha 27 anos e nunca sentira essa sensação.

Sonhava com o dia em que pudesse realizar essa vontade que lhe povoava a mente de expectativas e anseios. Que vontade louca que tinha! Só de imaginar que agora saberia como seria, que agora iria realizar o que queria e sentir a sensação que tanto havia aguardado, Jana começou a ficar preocupada. E se algo desse errado? E se a sensação não fosse tão boa quanto imaginava? E se houvesse um acidente de percurso? Claro, como não havia pensado nisso antes? Qualquer movimento em falso, qualquer ato precipitado e pronto, tudo iria por água abaixo.

A tensão crescia sem precedentes na imaginação de Janaína, mãe de Guilherme, editora da revista Canto Pra Você, residente na Rua Orixás, cruzamento com a Alameda Itaitú, em alguma cidade perdida por esse Brasil continental. Pensou no que lhe acontecera de manhã. Tudo fora tão perfeito. O café da manhã na cama, o sorriso farto que ele lhe dera. Como era bom ter redescoberto o amor, tantos anos após desaprender seu significado. Agora tudo parecia caminhar bem. Tudo ia bem. Pressentia bons ventos entrando pela janela, mesmo envolta naquele calor de fim de janeiro.

Havia jurado para si mesma que não se deixaria levar por simples e comuns promessas de amor. Essas promessas vazias que são feitas vez ou outra na vida das pessoas e que uma hora calha da pessoa ser ela. Quando ocorria essa infeliz coincidência, Jana já sabia o que fazer. Quando vinham com conversa fiada, querendo maiores intimidades, ela logo cortava qualquer tipo de relacionamento que pudesse vir a se desenrolar. Não queria sofrer na vida mais do que já havia sofrido. Assim, criou o hábito do desapego, na verdade acabou se apegando ao desapego como forma de manter-se viva e em pé.

Com o passar dos anos, foi se tornando endurecida e vazia. Algo lhe faltava. Não estava feliz consigo mesma. Estaria se estivesse feliz. Mas não estava feliz logo não poderia estar feliz. A felicidade era o bem estar, o coração pleno, a paz de espírito. Não tinha felicidade na felicidade que julgava ter quando deixou do lado de fora de seu coração as pessoas que pudessem ser sinônimo de qualquer tipo de relacionamento.

Foi quando tomou a decisão que mudaria toda sua vida e que a faria pensar, naquele fatídico momento, se deveria ou não continuar o que estava fazendo, se sentiria tudo o que planejara, se seria como havia sonhado que fosse. Resolveu dar uma segunda chance ao coração, merecedor de uma outra chance já que havia ficado tão castigado e maltratado por tantos que por ali passaram, deixaram suas marcas e foram embora levando muito dele, deixando-o esburacado, maltratado, feio e sujo, mas vivido. Muito vivido.

Conheceu um rapaz lindo. Na verdade nem tão lindo. Mais do que na verdade, era lindo só aos olhos de Jana, porque os outros o achavam uma figura um tanto caricata. Mas ela se apaixonou, com aquele coração sedento de paixões e amargurado pela solidão depois de tanto tempo só, sem ter quem curasse suas cicatrizes e fechasse seus buracos. Seu nome era Andrei. Jana sonhava com Andrei mesmo acordada, assim como Andrei sonhava com Jana, acordado ou dormindo. Os momentos tinham sido todos perfeitos. Andrei era o homem que tanto esperava, ansiara por conhecê-lo mesmo sem saber quem era, mas reconheceu-o logo que o viu, logo que lhe falou pela primeira vez. Foi por tê-lo conhecido que estava ali agora. A vida a havia levado até ali, para a primeira vez que sentiria aquela sensação, a adrenalina no sangue acelerava o coração, fazia tremer o corpo e revirar os olhos. Decidiu que se algo desse errado é por que havia de dar errado. Sim. Andrei insistira tanto para realizar seu desejo, por tantas vezes encorajou-a a viver aquele momento que, agora que estava lá, seria uma desfeita, um absurdo voltar atrás. Afinal, se havia deixado chegar até aquele ponto, se tinha topado ir até ali, não poderia mais voltar, apesar dos receios e do frio na barriga, do medo que precede o êxtase.

Constatado isso criou a coragem necessária. Deu um passo à frente e o instrutor, colado às suas costas, gritou:

- Pode soltar Zé!

Foi então que pularam. Ela estava acoplada ao macacão do instrutor de bungee jump na parte da frente. O salto era de 80 metros. Findado os segundos da queda alucinante, Jana gritava de satisfação. Agora já conhecia a sensação. Melhor, muito melhor do que imaginara. Passara o medo da primeira vez. A primeira vez que pulara de bungee jump.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Amélia

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Amélia era mulher de verdade. Tinha toda vaidade do mundo, se cuidava toda, todo dia a toda hora. Gostava de produzir-se, por dentro e por fora. Vivia em salões de beleza e em cursos de História da Arte. O intelecto acompanhava a beleza de Amélia. Tudo o que estava a seu alcance ela fazia. Costumava brincar dizendo que existiam várias Amélias, cada qual para uma função diferente. Havia a Amélia dos filhos, que cuidava o máximo que podia, ajudava nas lições de casa, os levava para passeios, arrumava seus brinquedos e realizava seus desejos, quando possível. Havia a Amélia esposa de Roberto, aquela dedicada ao marido, que se produzia e se enfeitava, estava sempre inovando o casamento, saindo da monotonia da rotina, criando situações inovadoras para que o casamento recuperasse o fôlego de tempos em tempos. Havia a Amélia professora, que empreendia todos os seus esforços para que cada aluno conseguisse superar seus limites e tirasse boas notas para engrandecer seu boletim escolar, assim como sua vida acadêmica. Havia a Amélia jogadora de vôlei do clube de campo do qual era sócia. Desempenhava essa função somente duas vezes na semana, de quarta-feira e sábado, mas quando jogava, era pra valer, parecia que a quadra de vôlei destinada à amadoras donas de casa era tomada por uma exímia jogadora do mais alto nível. Havia a Amélia filha da dona Joana e do seu Tonho Zé, carinhosa, cuidadosa, atenciosa e sempre presente. E havia também a Amélia mulher, aquela que se produzia para si mesma, aquela que lia livros bons e ruins, revistas de moda e cultura, aquela que ficava só com seus pensamentos – e haja tempo pra arranjar tempo pra isso – mas ela conseguia.

Amélia conseguia fazer tudo o que queria, fazia tudo com perfeição, nada lhe escapava. Tudo era sempre perfeitamente feito quando era feito por Amélia. Ela não servia aos outros, servia a si mesmo. Fazia o que queria fazer, o que lhe agradava, o que a deixava bem consigo mesma. A epifania da vida de Amélia era fazer coisas. Tudo o que queria era fazer as coisas que queria fazer. E fazia. Nada lhe dava maior prazer do que isso, nada a fazia se sentir mais viva. E como vivia. Vivia plenamente, gozava da vida como se seu último suspiro fosse ser dado dali um minuto. Aproveitava cada átimo da existência para que nada tivesse sido em vão. Afinal, pensava ela, quando morrer meus filhos lembrarão de mim pelo tempo em que viverem, em suas horas vagas. Depois deles, ninguém mais se lembrará. De que valerá então minha efêmera vida se não aproveitar o quanto posso?

E estava certa Amélia. Com o passar dos anos, nem os cremes de beleza seguraram sua pele, que despencou em pelancas pelo esqueleto idoso. A beleza de antes foi embora, restando somente o adquirido nas aulas de História da Arte e nos tantos livros comprados às pencas pelos sebos da vida. Depois, nem isso restou mais. Foi-se o esqueleto, a beleza, os livros e a essência. Ficaram os filhos que depois de um tempo, foram-se também. Então nada mais restou, a não ser uma linhagem de seus próprios genes que não conhecera, espalhando-se pelo mundo. Por isso viveu quando teve vida.

Não poderia te-la vivido depois.


domingo, 12 de dezembro de 2010

O que aconteceu em 2010

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O ano passou rápido que nem percebemos. O fim do ano já chegou, 2011 bate à porta e as coisas parecem estar piores do que nunca. A cada ano que passa, parece que a situação do mundo piora, as guerras em vez de cessarem, se iniciam. O preconceito em vez de se extinguir, vela-se. A natureza em vez de abrandar, se revolta. O espírito do homem em vez de ficar em paz, procura por batalhas das quais perderão todos, tanto um lado quanto o outro.

Parece que se colocarmos na balança, os anos tem mais coisas ruins do que boas a se pesar. O ano de 2010, creio eu, não foi diferente. Logo no início do ano, têm-se o devastador terremoto no Haiti, ceifando milhares de vidas, inclusive da fundadora e coordenadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns. No Brasil, o tráfico continuou tomando conta, a violência maior do que nunca. Mendigos sendo assassinados no Norte do país para que as ruas das praias ficassem "limpas" de coisas feias e sujas. A Copa do Mundo na África do Sul, em junho desse ano, serviu para mostrar uma nação mais unida, liberta das amarras da época do Apartheid, mas em vez de alegrar, entristeceu seu maior expoente, Nelson Mandela, levando sua neta em um acidente durante a abertura do campeonato.

Passado o fracasso da seleção brasileira nos jogos do meio do ano, vem a campanha eleitoral, a mais sem graça e putrefata campanha eleitoral dos últimos anos. O povo brasileiro optou por eleger Lula novamente, mas Lula não estava entre as opções de voto, o que acabou mostrando o quanto o povo brasileiro se deixa levar pelo carisma em vez de analisar seriamente propostas concretas dos partidos na disputa. Serviu para colocar a primeira mulher na presidência do país. Pena que não foi eleita pelos próprios méritos, e sim pela sombra do carismático presidente.

O Nobel da Paz de 2010 foi concedido a um chinês, Liu Xiaobo, que foi proibido pela ditadura reinante no país de deixar a prisão em que se encontra (devido à subversão ao regime ditatorial) para receber o prêmio. Sua família também não pôde sair para recebê-lo, deixando a cadeira destinada ao Nobel da Paz desse ano vazia, como mostra do absurdo em que se encontra a maior nação do mundo: querendo apagar da mente de sua população o prêmio concedido a um chinês para que possam cada vez mais manipular as mentes das pessoas que não podem mais agir, se não como manda o figurino. A China esse ano, mais do que em todos os outros, deu mostras de que regride cada vez mais e sua ditadura se mantém fortalecida.

Há poucos dias, 81 presos foram mortos queimados em uma prisão em San Miguel, no Chile, evidenciando a vergonha em que se encontram as cadeias na América Latina. A prisão em que morreram esses prisioneiros estava suportando o dobro de sua capacidade, como a maioria das cadeias atualmente. Enquanto forem os pobres a morrerem queimados, infelizmente, de nada valerão os tão sonhados Direitos Humanos. Só para relembrar, o Chile foi palco de grandes tragédias esse ano, como o terremoto que assolou parte do país no começo de 2010 e os mineiros que tiveram sua vida por um fio presos numa mina de cobre a muitos metros de profundidade.

No Oriente Médio, Sakineh Mohammadi Ashtiani foi condenada a dezenas de chibatadas e à morte por apedrejamento. Tudo isso por adultério. Após algum tempo, constatou-se que o chamado adultério cometido por Sakineh foi envolver-se com um outro homem após a morte de seu marido. Atualmente, ela aguarda a execução de sua pena presa, mas sua situação abrandou-se devido à intervenção mundial no caso e à visibilidade que teve.

Nos últimos dias de um ano conturbado, vemos que a humanidade continua matando, guerreando sem causa, continua fingindo, excluindo minorias, favorecendo quem não precisa. Mas também vemos que o mundo se comove mais, que a mesma humanidade que condena uma mulher à morte por apedrejamento é a humanidade que se mobiliza para que a pena não seja executada. Vemos que a humanidade que proíbe um cidadão de sair de seu país para receber o Nobel da Paz é a mesma que lhe concede o Nobel, como forma de tentar resgatar a China e um pouco da dignidade de sua gente. Que 2011 seja o ano em que, quando postos na balança, pesem mais os bons momentos que os maus. Façamos todos nossa parte!

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

De onde veio o Papai Noel?

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Está chegando o Natal. Época de reflexões e celebração. É época de refletirmos pois enquanto celebramos muitos não tem o que celebrar, ou como celebrar. Mas à parte as diferenças sociais, o Natal inspira em mim um desejo de fraternidade e renovação (que diga-se de passagem, deveria durar o ano inteiro), além de claro, ser uma época linda, onde as casas se enfeitam e as ruas se enchem de luzes coloridas, dando um clima diferente ao nosso já costumeiro calor de fim de ano. E é por causa da chegada do Natal que resolvi postar aqui sobre como surgiu seu maior expoente (não, não é o menino Jesus), o Papai Noel.

O Papai Noel nem sempre foi como o conhecemos hoje. No início da história do Natal cristão, quem distribuía presentes durante festividades natalinas era uma pessoa real: São Nicolas. Ele vivia em lugar chamado Myra, hoje Turquia, há aproximadamente 300 anos AC. Após a morte de seus pais, Nicolas tornou-se padre.

As histórias contam que São Nicolas colocava sacos de ouro nas chaminés ou os jogava pela janela das casas ( vê-se que o Papai Noel daquela época era muito mais generoso do que nos dias de hoje ). Os presentes de natal jogados pela janela caíam dentro de meias que estavam penduradas na lareira para secar. Daí a tradição natalina de pendurar meias junto à lareira para que o Papai Noel deixe pequenos presentinhos.

Alguns anos depois, São Nicolas tornou-se bispo e, por esse motivo, passou a vestir roupas e chapéu vermelhos e barba branca. Depois de sua morte, a Igreja nomeou-o santo e, com o início das celebrações de Natal, o velhinho de barba branca e roupas vermelhas passou a fazer parte das festividades de fim de ano.

O Papai Noel que conhecemos hoje surgiu em 1823, com o lançamento de “Uma visita de São Nicolas”, de Clement C. Moore. Em seu livro, Moore descrevia São Nicolas como “um elfo gordo e alegre”. Quarenta anos mais tarde, Thomas Nast, um cartunista político criou uma imagem diferente do Papai Noel, que era modificada ano a ano para a capa da revista Harper’s Weekly. O Papai Noel criado por Nast era gordo e alegre, tinha barba branca e fumava um longo cachimbo.

Entre 1931 e 1964, Haddon Sundblom inventava uma nova imagem do Papai Noel a cada ano para propagandas da Coca-Cola, que eram veiculadas em todo o mundo na parte de traz da revista National Geografic. E é esta a imagem do Papai Noel que conhecemos hoje.

Entretanto, com base num livro muito excêntrico, diga-se de passagem, que narra a biografia do Papai Noel, o autor Gerry Bowler conta a história real de como teria surgido essa lenda e diz que a imagem do velhinho de barbas brancas e trajes vermelhos é construção pura e simples do capitalismo e da Coca-Cola.

O autor é historiador e fez essa biografia com base em documentos verídicos. Para justificar a imagem atual de Papai Noel, ele se sai com essa: "Creio que o imaginamos como um sujeito idoso, gordo e bonachão por motivos psicológicos e sociais bem definidos. Ele é velho porque essa é a idade em que se consegue ser próspero e generoso. Ele é gordo porque representa excesso e celebração, não economia e autodisciplina. E é bonachão pois o Natal é época de alegria." E arremata: "Se Papai Noel não existisse, teríamos que inventar alguém idêntico a ele".

À parte as convergências quanto à figura real do Papai Noel, nada mais fofo do que ter a presença do bom velhinho nos lares ao final do ano. Enfeite sua casa para esperar a chegada do maior mito do Natal, quem sabe não sobra um presentinho na sacola pra você né?!

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Circo dos Sonhos

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Saindo da rodoviária da Barra Funda, na cidade de São Paulo, me deparei nesta manhã de ventos quentes com um circo um pouco modesto em sua aparência, num terreno de terra batida em meio à capital paulista. A lona azul e branca listrada e com algumas estrelas da mesma cor estava encardida pela terra que secara e se incrustara em sua superfície após as chuvas dos últimos dias. Além dessa poeira, que era um encardido novo, era possível também ver o encardido velho, aquela poeira de anos, de um lugar já cansado de tanto sonhar e nada viver.

O nome do lugar me remeteu às mais loucas fantasias de criança, a um cenário irreal e encantado, povoado somente pelos sonhos que povoam nossas mentes. Que sonhos viveriam no Circo dos Sonhos? Se pudéssemos entrar em um picadeiro e realizar um sonho, que sonho escolheríamos viver?

Provavelmente, o sonho de muitas pessoas se adequaria ao cenário de um circo, com direito a purpurina, platéia, aplausos e holofotes. Muitos escolheriam a fama, a fortuna, a aparência perfeita, conhecer o mundo, desvendar segredos, ter dons divinos. Pode-se sonhar de tudo dentro das lonas do circo, qualquer que seja ele, o mágico o realizará. Entretanto, muitos dos sonhos que poderiam ser infinitos acabam se limitando às dificuldades diárias, fazendo com que pessoas tenham como o sonho de suas vidas uma saúde bem cuidada, a não discriminação, seja ela social, racial ou sexual, o direito à vida digna efetivado. Muitos pensariam em tornar realidade o sonho de terem o que comer todos os dias.

Enquanto os sonhos existem para voarem alto, a realidade está aí para cortar suas asas, limitando a palavra sonho ao que deveria ser direito de todos. Sendo assim, os verdadeiros sonhos a serem sonhados acabam ficando empoeirados como o circo branco e azul, lugar de sonhos tolhidos pelo cotidiano e encardido pelas águas barrentas que levam consigo, cada vez que deságuam, um pouco da magia dos encantados sonhos.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Vazio

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Eis que vem o vazio, que há muito não surgia pelo regramento cotidiano. O vazio e sua insuportável presença palpável. O vazio que preenche o ambiente, que entope a respiração, o vazio que cala pelo peso, que adormece pelo cansaço, que enche a noite da mais completa solidão. A angústia de sentir o vazio dentro de si, o nó na garganta, a tristeza profunda, o inexorável medo de estar sozinho estando cercado por outros. Como pesa mais o vazio quando a solidão é acompanhada por pessoas que não conseguem ser alguém, pessoas que mesmo existindo, não conseguem preencher aquele vazio.

Existem vazios nos caminhos obscuros do coração que são preenchidos somente com nome e senha confidencial. Se perderem a senha dos meus caminhos, que faço eu? Ficarei no vazio para sempre? Já pesa o vazio novamente paralisando meus movimentos e habitando meus pensamentos. Como pesa o o peso do vazio!