sábado, 30 de março de 2013

O medo de Luciana

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Embora a solidez do mundo frequentemente se desfaça em desagradáveis nuvens de fumaça cinzenta em torno de nossas cabeças,a realidade é que nada mais temos em volta de nós do que fumaças e gases das mais diversas cores, cheiros e texturas. Aparecem e passam logo, num piscar de olhos. Enfim, nada é tão cabalmente fixo ou sólido como o mundo por vezes nos aparenta. E foi num dia assim, cheio de fumaças ululantes em seu redor, que diga-se de passagem cheiravam bastante mal, que Luciana resolveu sair de casa, em busca de um mundo novo, novas oportunidades e até mesmo, quem sabe, algumas pessoas interessantes. O pensamento dela estava em fúria desde o dia anterior, na realidade noite, antes de dormir, quando resolveu deixar o luto de lado e ir em busca de uma vida digna, que lhe proporcionasse algumas emoções de vez em quando. Entretanto, agora que chegara a hora de ir em busca de tudo o que havia imaginado, que lhe pudesse tirar daquele marasmo em que se encontrava a anos, daquela depressão profunda, da qual nenhum médico conseguiu fazê-lo, com nenhum medicamento, por mais revolucionário e eficaz que parecesse, ela estacou. Só de ouvir o despertador soar as oito da manhã o aperto no peito foi enorme. O que fazer agora?Estava ela, novamente, diante de uma encruzilhada, sem saber o que fazer da vida para que ela prossiga, com medo de tudo o que lhe fosse surgir pelo caminho.

Para que pudesse se acalmar um pouco, sentou na cama e rezou, como há muito tempo não fazia. Na realidade foi mais uma tentativa e erro, pois não conseguia se lembrar do Pai-Nosso, nem de nenhuma outra oração minimamente popular. Meu Deus, como era difícil! O que ela poderia fazer para se lembrar? Entrar na internet e pesquisar? Mas, por Deus, que vergonha! Como poderia ela, que se autodeclarava cristã há anos, não saber a oração mais orada do mundo? Se não era capaz de rezar conforme o rito do que dizia seguir, provavelmente não seria capaz de nada mais. Como no dia anterior, quando ficou com fome, no entanto teve medo de ir até a cozinha no escuro de seu apartamento. Embora não fosse grande, sair de sua cama a apavorava. Pior, não conseguiu sequer ligar para um disque pizza, ou disque qualquer coisa que o valha, pois ficou com mais medo ainda de sair da cama e dar de cara com outra pessoa levando sua comida. Estaria então ela cara a cara com um assassino, que já teria agido e colocado veneno no pedido, ou pior, um estuprador, que em vez de fazer o favor de levá-la dessa vida desagradável a fosse aterrar nela mais e mais, e depois deixá-la sozinha de novo, no apartamento escuro em que se encontrava toda sua vida?

Definitivamente, lembrar que não havia comido a deixara com fome agora. Mas não era culpa sua. Era aquele maldito medo que não a abandonava. Agora, no entanto, era dia e estava claro, embora ao abrir um pouco a janela pudesse ver que havia muita fumaça no ar. As pessoas costumam chamar de névoa, embora isso não fizesse diferença nenhuma para Luciana. Fechou a fresta que abrira da janela, para que aquela fumaça cinzenta não adentrasse sua casa. Tinha medo de dias assim, cinzas. Sempre lhe pareceram tão inóspitos. Para recomeçar a vida, tentar novas experiências que a fizessem sair daquele luto eterno e daquela solidão sem fim, tinha imaginado um dia cheio de sol e luz, com os pássaros piando, cantando nos piados uma sinfonia de alegria e coragem, como um prenúncio de que lhe era cabido seguir e cada vez mais seguir em frente, sem medo ou receio do mundo. No entanto, aquele cinza simplesmente a aterrava. Não podia sair com o dia assim. O telefone tocou, de novo. Será que hoje tocaria tanto quanto ontem? Não atendia mais aos chamados. Nunca era ninguém que de fato lhe importasse sinceramente. Não atenderia hoje novamente. Fazia quanto tempo que não atendia as ligações? Uma semana, duas? Sinceramente, não sabia ao certo que dia era e nem quem era ela própria. Não saía do quarto há muitos dias. Antes, seus dias longos e solitários se restringiam ao apartamento, mas o desbravava sem medo. No entanto, a restrição foi aumentando mais e mais, até que chegou ao extremo de sua cama. Só conseguia abrir a janela pelo fato de sua cama estar encostada na parede em que ficava a janela, não precisando Luciana sair da cama que tanto amava e lhe transmitia segurança.

A fome aumentava, cada vez mais. Afinal, não se lembrava sequer da sensação que sentiu da última vez que havia comido algo. Também, pudera, se lembrava agora que na cozinha não havia absolutamente nada que pudesse ser feito, pois não fazia compras há séculos. Teria que ligar pedindo algo. Mas tinha medo. Decidiu que não sairia de casa, o dia não estava bom. Definitivamente, cheio de fumaças, não era o dia que havia imaginado. Voltou para a cama e ficou lá, se sentindo melhor agora que decidira que não iria a lugar algum. Era questão de tempo esperar o sono vir e levar a fome embora com ele.