quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O Natal de Jocasta

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O dia 24 de dezembro chegara tão rápido que o pai nem havia tido tempo de juntar um pouco de dinheiro para o presente das crianças. Quando a mulher soubesse, o mataria, faria o costumeiro escândalo de véspera de Natal, já habitual na casa dos Laranjeira. Sempre, no mês que antecede dezembro, ele e a mulher planejavam como poderiam otimizar o orçamento e economizar para que os filhos pudessem receber presentes. Mas nunca dava. O pai não resistia à cachaça diária e optava por ela. Gastava mesmo todo o dinheiro que deveria ser economizado com sua tão reconfortante amiga de todas as horas. Era difícil para ele, como pai, ver os filhos ficarem sem presentes de Natal, todo ano era assim. Não se recordava de haver um natal sequer que ele e a mulher tivessem presenteado os filhos. Nem a mais velha, Jocasta, de 13 anos, havia sido presenteada algum dia. Exceto pelos sapatinhos de batismo que havia recebido com poucos dias de vida, logo que saíra da maternidade do Hospital São Clemente.

Enquanto o pai sentia-se culpado da pinga quente que tragava, a mãe tratava de ver se conseguia algum frango para assar no natal. Frango assado na casa dos Laranjeira era algo raro, raríssimo. Até passavam sem ele alguns natais. Quando isso acontecia, era substituído por algum peixe que o pai pescava no rio que passava no fundo do casebre. Na verdade não era bem um rio. Estava mais pra um córrego sujo que qualquer outra coisa, mas era o que dava pra fazer. Então, para que não tivessem que comer o peixe com gosto de esterco no final do ano, a mãe de Jocasta tratava de pedir de porta em porta um donativo para a casa de caridade Criança Faminta. De certa forma não deixava de ser, pois suas crianças viviam famintas. Não gostava de pedir, mas quando o desespero lhe apertava a garganta ia correndo mendigar algumas migalhas por aí, para que conseguissem de alguma forma comemorar uma época tão bonita como o natal.

Além de Jocasta, a mãe ainda tinha como seus filhos Atílio, Pedro, Cassiano, Maria Adélia e Maria Cristina. Com esse tanto de irmãos, o frango havia de ser bem repartido, senão alguém ficaria sem.

Jocasta não entendia o porquê de a família gostar tanto de Natal, quando essa época do ano somente acentuava as dificuldades daquela família. Ficava com dó da mãe colocando a mesa com umas velas usadas, os copos de requeijão, a toalha vermelha rasgada, ainda da época do casamento. Os presentes sempre ausentes na véspera de natal, assim como no dia de natal, assim como no dia seguinte do dia de natal até todos os dias do ano. Apertava-lhe o coração ver o pai sempre morto de cansaço, sempre com aquele cheiro de ferro misturado com pinga e suor. A mãe, sempre tão infeliz, tentando aparentar uma felicidade tão inexistente quanto os presentes de natal e sempre tão vazia quanto as promessas do marido de que deixaria a bebida. Os irmãos sempre com o choro de fome e pobreza entalado na garganta, mas não posto para fora. O choro que não vertia fazia as rugas aparecerem mais depressa e a responsabilidade chegar mais rápido aos pequenos irmãos Laranjeira.

Querendo dar um Natal um pouco mais digno do que costumava ser o de sua família, Jocasta resolveu que perderia ela a dignidade por uma noite apenas e arrecadaria um dinheiro extra para dar à mãe como presente de natal. A deixaria muito feliz poder ver sua mãe e seu pai sorrirem verdadeiramente durante uma ceia de natal. Eles não precisariam saber a origem do dinheiro. Diria que achara no meio da rua, que fora providência divina!

Na noite seguinte, antevéspera de natal, Jocasta saiu do casebre à beira do rio no qual morava e rumou em direção à Rua Santa Tereza, local onde garotas de todos os tipos e idades vendiam o corpo em troca de alguns reais. Umas que estavam há muito tempo no ramo conseguiam lucrar mais, mas as muitas que ingressavam na vida pregressa das ruas não conseguiam tirar mais que uns vinte e cinco reais por noite. Chegando lá, parou numa esquina onde não havia outras garotas, subiu um pouco mais a saia de renda que pegara emprestado de uma vizinha e colocou a mão na cintura. Dava para sentir os ossos. Ela mesma ficara espantada com a magreza, arregalando os grandes olhos castanhos emoldurados pelo cabelo crespo e comprido que caia pelo ombro do jovem corpo. A tensão crescia conforme aparecia algum carro, quando alguém diminuía a marcha quando chegava perto dela, para depois acelerar e sumir na escuridão do fim da rua. Até que algum tempo depois, umas duas horas depois de se prostrar ali, um carro realmente parou e lhe perguntou o preço.

- Quinze reais – respondeu a garota, sufocada pelo medo e pela insegurança do que fazia.

- Quanto? Garota, não se enxerga? Você vale no máximo uns dez reais, é o quanto cobram as meninas por aqui. Te pago dez. É pegar ou largar.

Pegou. Foi com o homem para uma rua sem saída, próxima da rua onde se prostituíra. O homem, um senhor pouco apresentável de barbas grisalhas, aparentava ter um 60 anos, era gordo e não tinha alguns dentes, além de ter umas micoses espalhadas pelo rosto. O senhor que pagara Jocasta não deveria conseguir mulher sem pagar há muitos e muitos anos, se é que um dia conseguira.

O sexo foi dolorido. Jocasta engoliu o choro e fez o trabalho ao qual havia se comprometido. Ao final da hora combinada, pegou os dez reais e saiu andando com as pernas um pouco abertas. Estava doendo muito.

Chegou um casa e deixou o dinheiro ao lado da cama dos pais, no lado do pai e foi dormir com um misto de dever cumprido e tristeza sem fim. Na manhã seguinte se lavou muito, para ver se saravam as feridas da noite anterior. Disse à mãe que achara os dez reais jogados na sarjeta próximo à casa deles na noite passada.

- Que dez reais menina?

- Os dez reais que deixei ao lado do pai nessa noite.

- Pois eu não vi nenhum dez reais por aqui – respondeu a mãe, já imaginando que o marido se apossara do dinheiro – Teu pai deve ter pego. Devia ter deixado o dinheiro comigo menina! Lá se vai tudo em pinga!

Jocasta, imaginando que o pai gastaria tudo em pinga mesmo, entalou o choro na garganta e saiu com a mãe para pedir dinheiro nas casas da redondeza. Ao final do dia, contaram as moedas. Conseguiram dinheiro para o frango, que compraram às pressas para a ceia de natal. Cearam como sempre. A única mudança que se operara ali era de Jocasta, que depositara todo o ódio da noite anterior na figura irresponsável do pai beberrão, que gastara escondido o dinheiro que havia conseguido em troca de sua dignidade. Aquele fora o natal de sempre para os outros, com pouca comida, um frango na mesa, o pai bêbado, os presentes invisíveis, mas fora o pior natal da vida de Jocasta, o natal em que aprendera que sua dignidade não valia mais que dez reais.

7 comentários:

MUITO BOM O JOGO DE PALAVRAS.
ADOREI

http://valeriarodrigues1.blogspot.com/

Belo texto e belo blog, amei a imagem do "já se programou hoje?"
parabéns, beijo ;*

Adorei a forma de como o texto foi evoluindo, de história comum, pedante, para uma conclusão maravilhosa, onde nos remete aos esforços nunca percebidos, nunca valorizados, ao sacrifício de Jocasta e à reação do pai, que, ao ver o dinheiro, possivelmente se apoderou para um trago.

Creio até que a raiva de Jocasta é unicamente pelo sacrifício não percebido, pela tarefa em vão, não pelo Natal que seria perdido, pelo frango que não seria comprado. Quando vc se prostitui aos 13 anos, foda-se o frango. Creio que a questão seja a tarefa não vista, o esforço pelo ralo.

Existir mas não ser reconhecido como um ser existente.

natal é um tempo em que a classe média se enche de requintes, dívidas e falsa alegria para tentar esquecer as dores cotidianas, tem gente que nem essa oportunidade tem. pobre jocasta,tem no nome a égide da tragédia. mas de toda tragédia há algo para se aprender. que ela aprenda e cresça.

parabens, adorei o blog :D
seu template é demais, e vc escreve super bem =)

http://popdrawer.blogspot.com

as imagens que acompanham seus textos personificam bem os personagens. Achei um blog que tem mais imagens como estas.
Sempre estou lendo seu blog