Miranda fez o que costumava fazer todos os dias depois do jantar: colocou os óculos de leitura, ligou a televisão no volume mais baixo, mas ainda assim audível e começou a repassar a agenda toda do dia seguinte. Como sempre, se cansava com antecedência só de prever a correria que seria. Teria que ligar para a faxineira assim que acordasse, pois a casa estava uma algazarra, levaria a roupa na lavanderia, pois sua máquina de lavar estava quebrada há mais de um mês e ainda não tinha tido tempo de levar para consertá-la e depois, só depois, iria começar o dia na editora. Miranda adorava o trabalho assim que começou como chefe de seu departamento, mas com o passar do tempo tudo foi se tornando igual e sem perspectivas. O tempo passava e a vida passava com o tempo, mas nada de novo acontecia, vai dia, vem dia, e tudo continuava igual.
Como não tinha filhos, nem marido, nem mulher, nem ninguém com quem pudesse relaxar, Miranda foi acostumando-se à solidão e fez dela sua companheira constante. No começo adorava ficar sozinha e poder desfrutar das delícias que a solteirisse e a solidão lhe proporcionavam: tinha total controle e comando sobre sua vida, a independência que sempre buscara. No entanto, Mirando foi percebendo que as coisas na vida só tinham graça caso pudessem ser compartilhadas, que suas conquistas, suas vitórias e suas derrotas só tinham um real valor se tivesse com quem dividi-las.
Quando se deu conta disso, Miranda já estava fechada o suficiente para o mundo. Pensava só nela mesma e no trabalho, única coisa que tinha de realmente seu em sua vida e ao qual se entregava de corpo e alma, talvez para não sentir o gosto amargo da solidão nas tantas horas vagas que tinha só para si. E foi numa dessas horas vagas, logo após o jantar de microondas diário, quando revisava a agenda e repassava alguns dos projetos do dia seguinte, que Miranda ouviu uma voz que lhe soou familiar:
- Olá Miranda. Há tanto tempo espero poder falar com você!
Um calafrio lhe percorreu a espinha e arrepiou os pelos da nuca. Miranda forçou os pequeninos olhos para um lado, para o outro, para a janela logo à frente, mas nada viu. Ficou muda de susto e curiosidade. Que voz seria aquela?
- Não lembras mais de mim, minha companheira de infância e juventude? - disse a voz feminina, como que de criança.
Com a sensação de que estava em meio a um sonho, Miranda pensou que não teria mal nenhum em começar a entabular uma conversa com a voz que surgira do nada, como que brotada das paredes do apartamento do 15º andar.
- Não me lembro de sua voz. E como seu rosto não consigo ver, acho que não a conheço.
- Não me diga que não se lembra nem um pouco de minha voz! Puxe pela memória...tantos foram os momentos que passamos juntas... Dou-lhe mais uma chance, caso não acerte, revelo-te quem sou.
Miranda pensou mais um pouco. Brincadeira esquisita era aquela. Tinha a sensação de que conhecia aquela voz, meio infantil, meio zombeteira. Mas não conseguia se lembrar, em definitivo, de quem pudesse ser aquela voz.
- Não me lembro - declarou.
- Pois bem, vejo que muito se perdeu nesse tempo. Achei que não pudesse se esquecer de algo que foi seu, de uma coisa que faz parte de você. Mas observando-a como está hoje, posso entender que se perdeu de si mesma e acabou por esquecer quem você foi um dia.
- Não estou entendendo. Diz logo quem é.
- Eu sou você, quando ainda tinha sonhos para sonhar e uma vida toda para viver. Como é triste ver no que me tornei! Quando jovem achava que faria tantas coisas de minha vida, que seria tanto, que viveria tantas coisas. Mas vejo que me perdi em algum ponto de minha caminhada e me afastei de mim. O eu de amanhã não sou mais eu...
O coração de Miranda gelou. Então era isso, claro. Como não reconhecera a própria voz de menina? Já haviam se passado muitos anos, mas era sua voz, algo que vinha de dentro dela e falava com ela mesma como se outro fosse.
- Agora reconheço a voz. Não me lembrei porque faz muito tempo, mas sou eu mesma, quando menina.
- Sim - disse a voz - não posso aparecer para que me veja pois minha aparência envelheceu, como a sua. Tenho o físico de sua idade, uma mulher madura, mas fiquei guardada em seu inconsciente como a menina de antes, então não posso me mostrar, tenho somente a voz como prova do que foi aquele tempo.
- E porque apareceu agora?
- Apareci pois não aguento mais a prisão que vivo. Pensamos tantas coisas quando moça, sonhamos tantas coisas para mim, e veja no que me tornei hoje, uma mulher de meia idade, cansada de tudo e todos, sozinha entre quatro paredes todos os dias do ano, sem amores, amigos, filhos. Sem nada que realmente importe. Apareci para talvez fazê-la enxergar como enxergava antes, apareci para que renasçam em ti os sonhos que existiam em mim, em nós, há tantos anos. Tantas coisas foram sonhadas, almejadas, tantas...e nada se conseguiu, tudo escoou pelo ralo! Em que ponto da vida se perdeu dos meus planos, dos nossos sonhos?
- No momento em que deixei de acreditar que seria possível fazer mais ou ser mais do que sou hoje.
- Então agora, digo para o que sou hoje que me mataria se tivesse meios para isso, mas como sou algo um tanto abstrato, fico cada vez mais infeliz de ter de conviver com a derrota antes do tempo, com a conformidade antecipada, com a velhice precoce da alma. Vou-me embora para o seu subconsciente, mas quero que se lembre de minha voz e de minhas palavras. Não deixe os sonhos irem pelo ralo, nem a vida se esvair em pó. Tente ao menos.
Então fez-se o silêncio, seguido de uma ventania. Miranda foi em direção fechar os vidros das janelas. A sensação de que aquela conversa com ela mesma havia sido um sonho crescia na medida em que os minutos iam correndo. Que loucura - pensou ela.
Acomodou-se no sofá e pegou novamente a agenda para continuar a rever os compromissos do dia seguinte. Olhou para o relógio pregado na parede da sala. O tique taque eterno das horas. Mudou de ideia. Sonho ou não, resolveu seguir o conselho do seu inconsciente. Foi para o quarto, trocou de roupa, fez uma maquiagem normal, pegou a bolsa e as chaves do carro. Quando estava saindo do apartamento, deu e cara com uma fotografia antiga que deixava na prateleira da sala, mas para a qual nunca olhava. Ela em seu tempo de menina, com o sorriso que demonstrava os sonhos e o amor que tinha outrora.
Apagou a luz e trancou a porta da sala, disposta a abrir muitas outras portas para sua vida.